Molhem Minha Goela com Cachaça da Terra
Homenagem aos 200 anos da Independência do Brasil
“Molhem Minha Goela com Cachaça da Terra” é uma obra dramática sobre a Inconfidência Mineira, revolta anticolonial no Brasil do século 18.
Movimento de caráter republicano e separatista, liderada por representantes da capitania de Minas Gerais, contra o domínio da coroa de Portugal, também ficou conhecida como Conjuração Mineira.
Os revolucionários, batizados de inconfidentes, demonstraram sua insatisfação com a política fiscal praticada por Portugal. A revolta fracassou e teve no alferes Joaquim José da Silva Xavier, conhecido como Tiradentes, seu líder.
Esta obra é dedicada ao único inconfidente negro, que também foi alferes, Vitoriano Gonçalves Veloso.
Ficha Técnica
Poesia e letras das canções para soprano: Luiz Carlos Prestes Filho
Música: Lucas Bueno e Luiz Carlos Prestes Filho
Pesquisa histórica: Ivan Alves Filho e Luiz Carlos Prestes Filho
Arranjos: Modesto Fonseca
Produção: Ricardo de Moraes
Soprano: Júlia Félix
Quarteto de Cordas da Universidade Federal de São João del-Rei:
Violino: Lucas Paiva
Violino: Bruno Lucena
Viola: Kennedy Oliveira
Violoncelo: Lara Cota
Libreto
Cena nº1
CENÁRIO DO BRASIL – SÉCULO 18
Palavra do inconfidente, jurista e poeta, Tomaz Antônio Gonzaga. Ele registrou na sua obra o seguinte sobre a situação do Brasil, no final do século XVIII:
“Prática de enriquecimento ilícito e de prevaricação; alto custo e ineficiência da justiça; prática de suborno; proteção oficiosa ao contrabando; corrupção na venda de despachos e patentes militares; deficiência de abastecimento e alto custo de vida; prática da usura; precariedade das condições de higiene dos estabelecimentos comerciais e hospitalares; e, finalmente, mendicância”
(o autor pronuncia o texto acima)
DECLAMAÇÃO
(o autor declama)
ENGENHO BOA VISTA
Pertenceu a família de Tiradentes. Foi confiscado pela coroa portuguesa e, após a Independência do Brasil, devolvido aos descendentes
(o autor pronuncia o texto acima e declama)
Meu corpo moído pelas engrenagens do tempo
É cana estraçalhada no engenho
Olhe para a garapa – pense: sangue correndo
Sangue que será fermentado, destilado, degustado
Que terá cor, textura, humor que verá sua verdade desaparecer
Ficará somente a lenda do sabor
Nenhuma imagem minha restou entre as páginas do processo da Devassa
O historiador com suas luvas brancas nunca conseguirá
Minha cor, minha textura, meu teor
CANTO
ESCRITURA - Composição Musical nº1
Não existe nenhum registro da verdadeira imagem de Tiradentes. Como seria interessante conhecer sua face! (o autor pronuncia o texto acima)
Nas faces das pessoas não vulgares vemos o reflexo da vida
Nelas uma ideia, a palavra que na maioria, despercebida
Respostas para mistérios que buscamos desvendar
O lado oculto da lua que da Terra impossível espiar
Um jato de luz nas profundezas do oceano
Um rasgo do sistema solar
Nas pessoas do incomum...
A bondade que buscamos, a singularidade do olhar
Cena nº2
DECLAMAÇÃO
(o autor declama)
OS PASSOS DE TIRADENTES
O que ficou de mim
Do meu viver
Do que fui um dia
Do que vi acontecer
Nem se sabe com firmeza
Onde nasci
Minhas ruínas incertas
Como provar que existi
As ruas de hoje – eram trilhas
As estradas – caminhos
As avenidas – atalhos
A Liberdade – um sonho de menino
CANTO
A VELHA FACHADA DO ALAMBIQUE - Composição Musical nº2
O Alambique Boa Vista durante anos ficou abandonado, como que enforcado e esquartejado pela Coroa Portuguesa
(o autor pronuncia texto acima)
Do Alambique Boa Vista eu era a velha fachada
O reboco do meu corpo despencava
Exposta ao vento, ao sol e à chuva
Todo dia as infiltrações afloravam emoções
Lembro que da dor, junto ao telhado, certa vez brotou uma flor
Matos junto à sacada me davam frescor
Tinta desbotada, calha desalinhada, tanta gente passava
Aguentei anos de janelas fechadas e aos poucos me entortava
Tudo descascava, escorria, se quebrava
Mas tinha uma viga que me dizia: Aguenta!
Sua palavra era a minha cachaça, me sustentava.
Cena nº3
DECLAMAÇÃO
(o autor declama)
MISSA DE CORPO PRESENTE
No Campo das Vertentes
Os moradores a mesma cachaça
Com a mesma cana
Que passam pelas mesmas dornas
Suas casas - seculares
Conheceram Tiradentes
Antigamente alambicavam clandestinamente
Como se fossem Inconfidentes
As rodas d’água
Nunca pararam de girar
Nunca pararam de orar
A mesma missa de corpo presente
CANTO
AGUARDENTE - Composição Musical nº3
O Alambique Boa Vista é o mais antigo em funcionamento no Brasil. Tiradentes acompanhou seu desenvolvimento, promovido pelo irmão, Domingos. Há quem garanta que o último pedido de Tiradentes, no patíbulo, no rio de Janeiro, não foi outro senão beber um cálice de cachaça: “Molhem minha goela com cachaça da terra!”
(o autor pronuncia o texto acima)
O que seria aguardente, não fosse o olfato?
Que nos chama, que pede uma aproximação de fato...
O que seria aguardente, não fosse a visão?
Que em cores nos envolve, sedução...
O que seria aguardente, não fosse o tato?
Que nos oferece veludo e arrepio de gato...
O que seria aguardente, não fosse o paladar?
Que afirma que a memória tudo consegue guardar...
O que seria aguardente, não fosse a audição?
Que faz cristais transbordar pequenas canções...
O que seria aguardente, sem sua origem, seu lugar
Que a cada gole saudades, palpitar...
CANTO
TRADIÇÃO - Composição Musical nº4
Abraçado pela Serra do Caxambu, o Alambique Boa Vista
(o autor pronuncia o texto acima)
O caxambu no couro - batida tem que aguentar
Com Amburana - fazer o atabaque reinar
Raios no couro do caxambu - aguardente do canaviá
Do Engenho Boa Vista, do Vitoriano Veloso - é doce mas pode amargar
Inteligência, sabedoria – das mãos ele vem derramar
Como a água que corre do rio, ninguém consegue parar
Xarope da cana - pela moenda tem que passar
Caldo que depois evapora - o fogo sabe falar
Aguardente no barril descansa - o caxambu vai chamar
Quando acorda a dança régia - ninguém consegue parar
Cena nº4
DECLAMAÇÃO
(o autor declama)
AOS VERMES
As vestes de Cristo
Foram disputadas num jogo de dados
As vestes de Tiradentes
Rasgadas, depois incineradas
Para que delas nem cor
Nem textura, nem cheiro restassem
Nem nas mãos, nem no inconsciente
Até mesmo do carrasco
Nacos de sua carne oferecidos
Nas estradas para os viajantes
Para os vermes que 30 anos após sua morte
Na boca ainda degustavam o sabor do seu sangue
Como o neto da Rainha Maria, aquela que assinou a sentença
Que fez o Alferes subir à forca... e ainda dizem
Que foi Dom Pedro I quem inventou a independência
CANTO
GERAÇÕES - Composição Musical nº5
Os inconfidentes plantaram a semente da liberdade do Brasil. A coroa portuguesa não conseguiu arrancar a raiz da árvore da independência.
(o autor pronuncia o texto acima)
A raiz na escuridão, segura a cana que enverga
A raiz é cega, mas todos horizontes enxerga
Nas folhas embaraçadas, no doce sabor do seu fruto
A raiz perpetra sua matriz, em tudo penetra
Ao sorver a História dos seus antepassados
A raiz a vida orquestra, enverga, não quebra
Cena nº5
DECLAMAÇÃO
(o autor declama)
MINHA LÁPIDE
Abaixo da minha lápide em Ouro Preto
Histórias requentadas
Nem a sombra do meu corpo
Verdades inventadas
Nem um fio do meu cabelo
Nem uma gota do meu sangue
Nem o roçar dos meus ossos
Mas na superfície – cravaram meu nome
Faz tanto tempo que o poder mudou de cara
Mas a essência de quem manda é a mesma
Escrota, suja, endinheirada
Intolerante, assassina, arrogante
Traidores sobre a minha lápide
Depositaram e depositam flores
Se vivo estivesse
Me enforcavam e esquartejavam de novo
CANTO
EPÍLOGO - Composição Musical nº6
A cachaça, símbolo de brasilidade, que era apreciada nas reuniões da Inconfidência Mineira, está em todas as cidades do Campo das Vertentes. Região impactada pelas conspirações que visavam a libertação do Brasil de Portugal
(o autor pronuncia o texto acima)
Quem se aproxima de Coronel Xavier Chaves
Sente a Cachaça do Alambique Boa Vista no ar
Se pergunta como ela consegue tantos quilômetros alcançar?
O que ela quer acordar? Por que esse seu desbravar?
Que sentidos inconfessos ela quer desabrochar?
Quem se aproxima de Coronel Xavier Chaves Escuta a roda d’água girar
Se pergunta como ela consegue 300 anos corrupiar
Sua força vem dos inconfidentes? Das terras que atravessa?
Ou da futura cachaça que será mais pura que uma promessa
FIM